Na semana passada relíamos as Asséret HaDibrot (conhecidas como 10 Mandamentos). Aqueles preceitos fundamentais, que na parashá desta semana são referidos como “ordens”, agora aparecem entrelaçados com uma série de mishpatim (normas), reafirmadas a Moisés e repetidas ao povo.

“Moisés repetiu ao povo todas as ordens do Eterno (col divrei Adonai)

e todas as normas (col ha’mishpatim)”. [Êxodo 24:3]

O paralelismo entre as duas porções é notável. Se na Parashat Itrô aprendemos sobre o descanso no sétimo dia, em Mishpatim esse princípio se expande: ele abarca não apenas o repouso semanal, mas também a remissão de dívidas no sétimo ano e a libertação do trabalhador endividado após seis anos de serviço [Êxodo 21:2]. Além disso, a própria terra deve descansar no sétimo ano [Êxodo 23:10]. Esses ciclos revelam uma ética social profunda, um chamado à justiça e à compaixão.

Ao internalizarmos essa ética, somos elevados ao status de povo consagrado:

“Sejam um povo consagrado a Mim” (ve anshei-kódesh tihiún li) [Êxodo 22:30].

O que significa essa santidade? Kedushá, consagração, pode ser compreendida como a disposição de viver sob regras civilizatórias que transcendem interesses individuais. Essa santidade se manifesta em leis que protegem não apenas o ser humano, mas também a natureza e até os animais. Nossa responsabilidade ecológica se reflete na proibição de destruir árvores durante uma batalha [Deut. 20:19-20] e na obrigação de aliviar o sofrimento do animal de nosso próprio inimigo [Êxodo 23:5].

Ou seja, as leis de Mishpatim vão além da simples regulação da vida em sociedade – elas nos moldam como seres morais e nos desafiam a agir com retidão mesmo em contextos adversos.

 

O Rosto do Outro: Entre o Próximo e o Inimigo

Muitas das leis de Mishpatim tratam das relações interpessoais. O rabino Jonathan Sacks ז״ל se referia a esse conceito como uma “lei com um rosto humano”. A Torá nos ensina a qualificar o outro com quem nos relacionamos, nomeando-o ora como “próximo”, ora como “inimigo”.

O termo “inimigo” reaparece em Mishpatim de maneira marcante, ao mencionar o boi do seu inimigo [Êxodo 23:4]. Isso nos leva a um questionamento essencial: quem é o nosso inimigo?

Mechilta de Rabi Ishmael (midrash rabínico sobre Êxodo 23:4) traz quatro interpretações sobre essa figura chamada ‘inimigo’. Três sábios identificam o inimigo como aquele cuja ideologia religiosa ou intolerância extrema se opõe radicalmente à nossa – um “outro radical”. Mas um quarto sábio, Rabi Jonathan, traz essa definição para um nível muito mais pessoal: “Se alguém bateu em seu filho ou teve uma briga com ele, ele se torna seu inimigo.”

Segundo essa visão, o inimigo não é apenas aquele que representa uma ameaça externa, mas também aquele com quem já compartilhamos laços, alguém que nos feriu em um nível íntimo e emocional.

 

Entre Justiça e Vingança: O Desafio Moral do Nosso Tempo

Nesta semana, cruzamos os 500 dias de cativeiro nas profundezas de Gaza. Cruzamosna primeira pessoa do plural. Desde o fatídico 7 de outubro de 2023, carregamos no peito a frase: “Nossos corações estão sequestrados em Gaza.”

O anúncio do assassinato de Shiri Bibas e de seus filhos, Ariel e Kfir Bibas, é um golpe devastador. Diante dessa dor e da raiva que nos atravessa, a Torá nos coloca frente a um desafio ético crucial: como agir diante do inimigo?

Hoje, o inimigo se encaixa em ambas as definições trazidas pelos 4 sábios. São aqueles que sustentam uma ideologia radicalmente oposta à nossa e, ao mesmo tempo, aqueles que maltrataram nossos filhos, irmãos e irmãs – e foram além.

Então, qual deve ser nossa conduta?

A Torá nos impõe um imperativo moral:

“Não fique de braços cruzados enquanto o sangue do seu próximo é derramado.” (Lo ta’amod al dam re’echa) [Levítico 19:16].

Somos chamados a agir. A combater injustiças. A proteger aqueles que estão em perigo. Mas há um limite que não podemos ultrapassar: o limite que nos impede de nos tornar semelhantes ao nosso inimigo. Nossa ação deve refletir nossos valores, não nossas feridas.

Que não fiquemos passivos frente às injustiças.

Que nossa resposta à violência não nos desfigure, mas reafirme quem somos.

Que nossos irmãos e irmãs sejam logo reunidos em casa.

E que nossos corações, hoje sequestrados, possam enfim ser libertados, curados e renovados.

 

Shabat Shalom!

 

Rabina Kelita Cohen

Academia Judaica da CIP

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