“Eu olho no espelho e vejo muitas pessoas no meu rosto, olho através da janela e apenas vejo eu mesmo”… escreveu o poeta israelense Yehuda Amichay em um maravilhoso poema. 

Assim como no próprio rosto podemos ver as marcas de muitas pessoas, e no rosto de muitas pessoas achar o próprio rosto também, são muitos os bons filmes e os bons livros cujas histórias e personagens nos ajudam a enxergar melhor a nós mesmos.

A Torá é sem dúvida alguma um desses livros espelhos, se não o maior e mais importante.

Este ano a leitura da parashat Bamidbar, cujo significado é “No Deserto”, coincide com o Shabat que é seguido pela festa da entrega da Torá, ou Shavuot. É este ano que devemos perguntar junto ao Talmud e ao Midrash a pergunta clássica: por que a Torá foi entregue justamente no deserto? Dentre as múltiplas paisagens da história judaica, por que justamente essa foi a escolhida?

No Midrash sugerem-se várias respostas.

Uma diz que o deserto cria uma situação de fragilidade que ajuda a gerar a solidariedade indispensável para a construção de uma sociedade saudável, na qual todos reconhecem as próprias fraquezas e as próprias forças, as necessidades de uns pelos outros e a responsabilidade mútua. Do mesmo modo a Torá pode ser recebida apenas num contexto solidário como esse, no qual cada um reconhece seu próprio valor para interpretá-la e ao mesmo tempo sua limitação e dependência. A Torá só é recebida em plenitude quando uma comunidade se une intelectual, emocional e existencialmente para incorporá-la.

Outra diz que o deserto como paisagem sem limites  expressa a abertura imprescindível de mente e espírito necessária para receber um texto eterno como a Torá. Uma leitura limitada, rígida, preconceituosa, estereotipada impediria a revelação da vitalidade dinâmica do texto. Assim como no deserto o alimento que se comia, maná, segundo a narrativa simbólica, tinha o gosto que cada um sabia dar-lhe, assim a Torá atinge todo seu potencial se os leitores de todos os tempos conseguirem a maior abertura de mente e espírito.

As interpretações universalistas dizem que o deserto representa o lugar de ninguém e de todos e, portanto, a entrega da Torá no deserto expressa sua democratização e universalidade. Não é apenas de um povo nem de uma cultura, está pronta para ser recebida em todo lugar e por toda pessoa digna.

Por fim, o deserto é o lugar do silêncio e a Torá diz muitas palavras, mas também cala muitos mistérios. Fala também através do silêncio. Como todos os seres humanos, como todas as músicas. Aliás, deserto em hebraico se diz “midbar”, que significa “fala”. Existem silêncios muito eloquentes. 

Que saibamos caminhar pelo deserto, abertos, solidários, sensíveis, fortes e humildes ao mesmo tempo, com criatividade para dar e revelar os sabores e os sons do silêncio sábio de nossa milenar Torá.

 

Shabat Shalom,

Rabino Ruben Sternschein