Vaerá (Êxodo 6:2 – 9:35), a porção da Torá lida nesta semana, é uma parashá de peso. Ela começa nos contando sobre o peso da mão do faraó, que sequer permitiu ao povo escutar as palavras de alento de Moisés, anunciando liberdade, pois “seus espíritos estavam esmagados por cruel servidão” (6:9)[1]. Em uma versão livre, eles se encontravam fatigados, sem poder respirar, pela pressão do trabalho duro (avodá kashá) que lhes era imposta pelo faraó.

Essa dureza aparecerá novamente nessa mesma parashá um pouco mais adiante, em um sentido oposto, ao dizer (7:3) que “o coração do faraó será endurecido” (akshê et-lev parô). Aqui, a ‘dureza’ se associa a ‘força’, como se comprova a seguir (7:13), quando o narrador nos deixa saber que realmente “o coração do faraó se endureceu” (vaiechezak lev parô). Ser oprimido (o peso colocado sobre os hebreus) e oprimir (a força exercida pelo faraó) são dois lados da mesma moeda.

A Torá parece querer deixar essa ambiguidade ainda mais explícita no versículo 14, ao se referir à dureza do coração do faraó (caved lev parô). A palavra caved (כָּבֵד) – pesado ou duro – compartilha a mesma raíz de cavod (כָּבוד), que transmite uma ideia positiva de honra e glória. E foi nesse lugar de honra que Deus anunciou a Moisés que o colocaria: “Eu te coloco no papel de Deus diante do Faraó” (7:1). Rashi, o comentarista por excelência da Torá, interpreta o significado dessa frase como “eu te fiz juiz e castigador – para castigar [o faraó] com pragas e dores”. O lugar de honra também outorga a Moisés o lugar do opressor, e ao faraó com os egípcios, a posição de oprimidos pelas pragas e aflições advindas delas.

Frente às palavras do próprio Deus, Moisés tinha autoridade para reconhecer-se divino. Muitas vezes nos deparamos com situações nas quais nos sentimos incapazes e diminutos, e é preciso que alguém nos faça ver nossa fortaleza. Por outro lado, reconhecer o divino que habita em cada um de nós pode acarretar o risco de ver o divino de si como superior, se não reconhecermos o divino que também habita o outro.

Como bons conhecedores dessa dualidade humana, nossos sábios nos ensinaram: “Quem é honrado? Aquele que honra seus semelhantes” (Pirkei Avot 4:1). Daqui aprendemos que a força e a grandeza estão em fortalecer e engrandecer os outros, e não em preservar a bipolaridade na qual só é possível ser grande tornando o outro pequeno, ou sentir-se poderoso ao subjugar alguém. 

Algumas vezes, quando dizemos que “fulano é uma pessoa de peso”, nos referimos a alguém cuja voz deve ser ouvida devido à importância que tem essa pessoa e, consequentemente, à força das suas palavras – uma pessoa honrada. Nesse exemplo também encontramos uma associação entre peso, força e honra, que tanto partem de uma raiz comum como também leva seus ramos para lados opostos. 

Por outro lado, quando se diz que “alguém é um peso”, estamos nos referindo a algo indesejável, que se converte em um estorvo naquele ambiente. Uma mesma palavra pode significar algo positivo ou negativo, dependendo do contexto e do momento, ou mesmo do falante e do ouvinte.

O atual rabino chefe do Reino Unido, Ephraim Mirvis[2], disse que nossos verdadeiros pesos pesados são aqueles que honram os outros, que respeitam a vida de outras pessoas e que lhes proporcionam vidas dignas. 

  • Que possamos ter a força e a firmeza para lutar as lutas que elevam a honra e a dignidade humana, especialmente daquelas pessoas que mais carecem dela; 
  • que possamos ter a suavidade e a delicadeza para acolher um elogio, um aplauso ou um reconhecimento, sem que deles resulte vanglória;
  • que possamos reconhecer a centelha divina em nós e nos outros com a mesma força e intensidade;
  • que possamos contar uns com os outros para fazer do trabalho árduo uma tarefa leve, participativa e colaborativa.

 

Shabat Shalom!

Kelita Cohen

 

[1] Êxodo 6:9, na versão em português de A Torá, um Comentário Moderno. 

[2] Ephraim Mirvis é Rabino Chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth, sucessor do rabino Jonathan Sacks, z”l.

 

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