Entre a obediência imediata às ordens Divinas e a sua contestação vigorosa, Avraham apresenta modelos bastante distintos de liderança religiosa no texto da parashá desta semana, Vaierá. Quando Deus lhe revela que destruirá a cidade de Sodoma e Gomorra porque seus crimes são muito graves, Avraham questiona a conduta ética de Deus nos termos mais fortes que se pode conceber: “O Juiz de toda a terra não agirá com justiça?!” [1]. Por outro lado, quando, alguns capítulos mais tarde, Deus exige de Avraham que sacrifique “seu filho, seu único filho, aquele que você ama, Itschác” [2], nosso patriarca consente sem questionar, toma seu filho e caminha com ele até o local em que Deus havia indicado que o sacrifício deveria acontecer. Não fosse por uma intervenção Divina no último minuto, quando a faca do sacrifício já havia sido levantada, Avraham teria, de fato, seguido a instrução de Deus e dado fim à vida de seu próprio filho

Ao longo dos séculos, as duas histórias têm sido apontadas como modelos de virtude e de comportamento religioso. Não foram poucos os comentaristas que destacaram, apontando para o episódio do quase-sacrifício de Itschac, que não apenas Avraham estava disposto a seguir a instrução Divina, mas que Itschac também estava disposto a ser sacrificado, se este era o plano de Deus. Uma devoção acima de suas vontades e necessidades pessoais era, de acordo com esta perspectiva e com as lições tiradas desta passagem bíblica, o ideal religioso a ser buscado. Se Avraham havia sido testado neste episódio, então ele foi aprovado com louvor. 

No entanto, pelo menos desde os tempos talmúdicos e apesar de tentativas das lideranças rabínicas de boicotarem este tipo de abordagem, a contestação à forma como Avraham aceita a ordem Divina de sacrificar seu próprio filho também tem feito parte de como os comentaristas abordam o quase-sacrifício de Itschac. [3] Para eles, a forma como Avraham questionou a revelação da destruição de Sodoma e Gomorra reflete uma postura mais saudável no relacionamento com a autoridade, até mesmo com a autoridade Divina. Em particular, a Avraham, considerado um iconoclasta, alguém que não deixava ídolos sem serem revirados, que não tinha medo de se colocar contra o consenso geral, essa seria uma postura mais alinhada com sua história de vida.

Eu penso nessas histórias e como elas podem se relacionar com outros modelos teológicos, não necessariamente com a Voz Divina externa que Avraham escutou e o instruiu a sair do lugar em que vivia e construir um novo lar em uma terra que Deus lhe apontaria, mas também com a voz interna, aquela que vem da fagulha Divina em cada um. Quando damos ouvido ao que a nossa voz interna diz, quase sem fazer perguntas, e quando a questionamos de forma intensa? Quando nossas certezas são tão fortes que aceitamos suas premissas a valor de face, sem nenhum questionamento, como dogmas cuja validade é inquestionável e cujo próprio ato de aceitação se torna uma forma de devoção quase-religiosa? Quando, por outro lado, fazemos as perguntas incômodas, sem certeza para onde elas nos levarão, com alguma trepidação de estarmos, de fato, traindo nossa voz interior e sabe-se lá mais o que no processo?

Na época das mídias sociais em que vivemos, nos definimos também pelas causas que abraçamos e pelas quais nos manifestamos de forma quase-obsessiva, algumas vezes. Repetindo o comportamento de torcidas de futebol, re-postamos os argumentos do nosso time sem questionar sua validade, passamos os olhos pelas postagens do outro time sem considerar a razão que possa existir nelas. E, como nos confrontos entre torcidas, que se tornam violentos com frequência inaceitável, nos tornamos simultaneamente abusivos e vítimas de abuso, radicalizando ainda mais as posições e as rivalidades.

Me inspira pensar na coragem que Avraham teve no seu desafio a Deus no episódio de Sodoma e Gomorra e nas lições que podemos tirar de seu exemplo. A relação dialógica com o Divino que se estabelece ali é das passagens da Torá que mais me tocam. Que possamos todos aprender com ele a ter a coragem de perguntar mais e ter menos certezas, para romper com ciclos de abuso e violência em que nossos posicionamentos algumas vezes se tornam, buscar estabelecer o diálogo, o reconhecimento da humanidade mútua, o acolhimento das dores, dos traumas, dos prazeres e das certezas que cada um de nós carrega, para estabelecermos debates mais respeitosos, compreensivos e produtivos.

 

Shabat Shalom! 

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Gen. 18:25 

[2] Gen. 22:1-2

[3] Veja, por exemplo, o 5º capítulo de J. Richard Middleton, “Abraham’s Silence: The Binding of Isaac, the Suffering of Job and How to Talk Back to God”.