“Baruch sheassá nissim laavoteinu baiamim hahem bazeman hazé”, “Abençoado seja Deus que fez milagres aos nossos antepassados naqueles dias, neste momento”. A brachá do acendimento das velas de Chanucá traz uma contradição. Afinal de contas: é naqueles dias ou neste momento?

A festa de Chanucá, que termina nesta sexta-feira, parece nos colocar, sistematicamente, diante de opostos para que nós busquemos o equilíbrio. Diversos símbolos ligados à Festa das Luzes expressam contradições e nos desafiam para a procura de um caminho intermediário.

“Baiamim hahem bazeman hazé”, “Naqueles dias, neste momento”. A história precisa dialogar com o cotidiano. Sem história, somos árvores sem raízes. Se tivermos apenas história, nos transformaremos em um museu de antiguidades. É justamente a releitura da história de forma criativa que imprime relevância ao judaísmo contemporâneo.

Os motivos principais da celebração de Chanucá são a vitória dos macabeus sobre os gregos e o milagre do azeite que durou oito dias. A crença em Deus é importante. Devemos ter esperança mesmo quando as condições físicas e materiais são extremamente adversas. O judaísmo nos convida a ter fé sempre. Ao mesmo tempo, o milagre do azeite nunca teria ocorrido se não fosse a coragem de Matitiahu e seus filhos. Caso não tivesse Iehudá Hamacabí liderado uma revolta a favor da nossa liberdade religiosa, não teria acontecido milagre algum. O milagre, na perspectiva judaica, é a responsabilidade que delegamos a Deus depois de realizarmos absolutamente tudo que se encontra ao nosso alcance.

Acendemos as velas de Shabat dentro de nossas casas. O local correto de se colocar as duas chamas que iluminam nossos jantares de sexta-feira é perto da mesa de jantar, para que possamos nos utilizar da luz da chama durante a refeição. Já em Chanucá é diferente. Devemos colocar a vela perto da janela ou do lado de fora de nossas casas. Havia antigamente um costume de se colocar a chanuquiá nas batentes das casas no lado oposto da mezuzá. Isso acontece porque o milagre deve ser divulgado. Temos a obrigação de propagar a luz para além dos nossos lares. Devemos fortalecer o particularismo judaico para sermos melhores cidadãos do mundo. Mais uma vez vemos a busca do equilíbrio entre aquilo que nos é privado e nossa responsabilidade universal.

A própria luz traz uma interessante contradição. Quando não existe claridade alguma, ficamos perdidos. Ao mesmo tempo, quando somos expostos à luz excessiva, também ficamos cegos. O termo aramaico para cego é saguei nahor, ou demasiadamente iluminado. A luz excessiva traz tantos danos quanto a ausência absoluta de luz. Nosso desafio é buscar uma iluminação que seja forte, por um lado, mas que não ofusque nossa visão por outro.

​As comemorações judaicas são, de uma maneira geral, a conjugação de um motivo histórico e a celebração de uma nova etapa da natureza. Pêssach comemora a saída do Egito e também o início da primavera. Shavuót celebra a entrega dos Dez Mandamentos e também a chegada dos primeiros frutos. Sucót relembra a vida em moradias temporárias no deserto e a última colheita do ano agrícola. Será que a festa de Chanucá lembra somente a história dos macabeus e o jarro de azeite, ou também tem algum motivo ligado à natureza?

Segundo os estudiosos do judaísmo, existe ainda um motivo ligado a Chanucá que foi esquecido com o passar dos anos: o solstício de inverno. A Festa das Luzes também marcava o dia mais curto do ano no hemisfério norte e o início do aumento das horas de luz a partir daquele instante.

Segundo esses pesquisadores, o ritual de acender uma vela a mais a cada dia pode ter se relacionado, no princípio, com o renascimento anual do sol. Na medida em que os dias iam se tornando mais longos, os judeus acendiam velas para celebrar essa transição. A comemoração de uma festa de luzes a partir do dia mais curto do ano ajudava a espantar a escuridão que assombrava o coração das pessoas. Enquanto muitos ficavam deprimidos e alimentavam sentimentos derrotistas, nosso povo se engajava em um ritual de esperança, coragem e luz.

Existe a famosa discussão entre Shamai e Hillel sobre a forma correta de se acender as velas. Enquanto Shamai queria que diminuíssemos as chamas a cada dia, Hillel sustentava que deveríamos sempre acrescentar uma chama. Isso porque em termos de santidade, devemos sempre incrementar e nunca diminuir. Sabemos que não é possível. Sabemos que nossa observância religiosa cresce e diminui ao longo de nossa vida. Nossa cashrut não é sempre a mesma, rezamos mais, ou menos, em períodos diferentes; conseguimos ser mais ou menos altruístas em fases distintas da nossa vida. Às vezes, agregamos luzes e outras tantas acendemos velas a menos. Eu tive um professor em Jerusalém, Shlomo Fucs, que acendia duas chanuquiót todos os dias da festa. Em uma ele acrescentava velas e na outra diminuía.

O óleo é um dos símbolos dessa festa. Por esse motivo comemos alimentos fritos, como os sonhos e os latkes. Nós sabemos que, ao colocarmos azeite em um copo com água, eles não se misturam. Apenas uma fina camada do azeite entra em contato com a água. Assim é o desafio da sobrevivência judaica. Se nos misturamos totalmente, perdemos nossa identidade própria. As mesmo tempo, se ignoramos o mundo que nos cerca, perdemos a oportunidade de nos enriquecer com aquilo que é estranho e deixamos de cumprir nossa missão de tornar o mundo mais humano. É justamente por meio de um instrumento supostamente grego —  o pião, ou sevivón —  que celebramos a sobrevivência judaica.

O principal desafio de Chanucá, acredito, é buscar equilíbrio em um mundo complexo. Conciliar passado e presente, individualismo e universalismo, escuridão e luz em excesso, identidade e isolamento. Baiamim hahem bazeman hazé, naqueles dias e também neste momento.

 

Shabat Shalom,

Rabino Michel Schlesinger