Nesta semana começamos a ler o último livro da Torá, Sefer Devarím — ou Deuteronômio, como é chamado em português. Deuteronômio é a segunda lei, uma repetição interpretativa de Moshé do acontecido desde a saída do Egito, a travessia pelo deserto até a chegada no banco do rio Jordão antes de entrar na terra prometida, a terra de Israel…

Perto do fim de sua vida, Moshé está diante dos filhos de Israel, dirigindo-se a eles e transmitindo seus pensamentos finais. Embora o livro de Devarím seja conhecido como o último discurso, o livro não é apenas uma despedida. O último livro da Torá é também, de fato, a pedra fundamental da tradição interpretativa judaica: “Do outro lado do Jordão, na terra de Moav, Moshé comprometeu-se a expor a Torá”. (Devarím 1:5)

Os primeiros capítulos do livro de Devarím e, como veremos, muitos de seus versos e capítulos em geral, estão repletos de eventos que já foram descritos nos outros livros da Torá e nas leis que já foram entregues. No entanto, em Devarím, eventos e leis são frequentemente descritos extensamente e às vezes com detalhes diferentes, não como poderíamos ter esperado de uma mera e sucinta repetição. Além disso, a natureza dessa repetição também não impede a inclusão de detalhes e lembranças, nem a expansão de componentes adicionais, novos para a história. 

A repetição tem um componente básico de garantir e criar um ponto de partida conjunto. O Sifrei Devarím, midrash do último livro da Torá, nos ensina: 

“Moshé comprometeu-se a expor a Torá…” Ele lhes disse: “Estou perto da morte! Alguém que aprendeu um verso e o esqueceu, que venham e lhes será repetido; uma passagem e esqueceu, deixe-os vir e será repetido para eles; um capítulo e esqueci, deixe-os venha e se repetirá para eles; uma lei e a esqueceu, venham e será repetido para eles.” É por isso que diz: “Moshé comprometeu-se a expor a Torá…”

De acordo com o midrash, Moshé inicia seu ato de interpretação sugerindo que todos os que sentem que a Torá não está na ponta de sua língua venha, aprenda mais uma vez, lembre-se e repita. 

Desta forma, a Torá e o passado se entrelaçam como âncoras básicas do ato interpretativo, tornando-se interpretação em um ato que tem um componente básico e significativo de repetição. Moshé transforma uma atividade aparentemente ocupada com o passado — com a história, com o que foi — em uma ação que ocorre no presente. 

Em toda a Torá, Moshé é conhecido como profeta. Agora, o livro de Devarím sugere que expandamos nossa compreensão de Moshé para vê-lo também como um intérprete. Assim, enquanto a profecia aponta para o que será, a interpretação, mesmo aquela que olha para a frente, olha de novo e de novo para o passado.

Esse é nosso desafio também, que a Torá esteja presente, hoje, na ponta de nossa língua, mas não apenas pelo fato de repetir se não de interpretar, transmitir e viver.

Que sejamos capazes de dar sentido e vida àquilo que falamos, que repetimos ressignificando a tradição em nossas vidas, todos e todas partícipes da continuidade e da transformação de nossa comunidade e de nosso povo.

 

Shabat Shalom,

Rabina Tati Schagas