Responsabilidade pelo nosso judaísmo

Uma discussão entre Shamai e Hilel sobre a sequência do kidush aparece no Talmud. Segundo Shamai, deveríamos primeiro abençoar os dias sagrados para, então, abençoar o vinho. Hilel, ao contrário, acreditava que a bênção do vinho deveria ser dita primeiro, para então ser realizada a brachá sobre os diferentes feriados. 

Hilel venceu e hoje todos nós realizamos a bênção do vinho em primeiro lugar e somente depois fazemos a brachá de qualquer dia especial. Penso que a discussão entre os dois sábios não é meramente técnica. Em minha opinião, Shamai e Hilel estão trazendo uma polêmica teológica bastante profunda e relevante. 

Quando Shamai defende que devemos primeiro santificar o dia, ele quer dizer que o feriado acontece de forma automática. Ou seja, mesmo que não façamos nada, mesmo que nem mesmo lembremos de sua existência, Shavuót, que começa na próxima quinta-feira, dia 28 de maio, por exemplo, aconteceria mesmo que não nos lembrássemos da data. Já Hilel, possui uma opinião diametralmente oposta. Para esse sábio, o homem traz o feriado. Apenas se o ser-humano se lembra do Pêssach, existirá Pêssach, somente quando nós nos recordamos do Shabat, então o Shabat passa a existir. Por esse motivo, primeiro fazemos a bênção do vinho, a atitude humana é que faz o dia se tornar sagrado. 

No final da discussão, o Talmud diz que Hilel venceu a disputa. O próprio Talmud questiona se seria necessário dizer que Hilel venceu, uma vez que uma voz teria surgido do céu dizendo que todas as disputas entre Shamai e Hilel foram vencidas por Hilel. Mesmo assim, o Talmud decide enfatizar que a disputa foi vencida por Hilel para aqueles que não se convencem pelas vozes vindas do céu. Para as mulheres e homens que acreditam que a Torá foi dada para que o ser humano resolva com bom senso e equilíbrio suas próprias disputas sem aguardar uma solução milagrosa, faz-se necessário enfatizar que essa disputa foi vencida por Hilel. Mais uma vez, identificamos uma tensão entre aquilo que vem pronto do céu e a religiosidade construída com iniciativa e dedicação humanas. 

Nesta semana, iniciamos a leitura de Bamidbar, o quarto e penúltimo livro da Torá. O centro religioso dos Israelitas deixa de ser o Sinai e passa a ser o Mishcán, um santuário móvel. O Sinai representa o local escolhido por Deus para entregar os mandamentos, uma religiosidade que parte do Criador e chega pronta e formatada às mãos de sua criatura. O Mishcán, por sua vez, era o santuário que nós montávamos e desmontávamos todos os dias. Uma religiosidade absolutamente dependente de iniciativa humana.

Que possamos assumir responsabilidade sobre nosso judaísmo. Que possamos montar o nosso santuário todos os dias. Que possamos abençoar o vinho sabendo que existirá tradição somente se nós formos capazes de dedicar tempo, espaço, recursos e energia para isso. Que possamos assumir o futuro e, principalmente, o presente do judaísmo em nossas mãos sem esperar pelas vozes vindas do céu. 

 

Shabat Shalom

Rabino Michel Schlesinger