A parashá desta semana – Ki Tissá – fala de rupturas. As tábuas de pedra gravadas com o dedo de Deus foram rompidas ao serem arremessadas por Moisés após a construção do bezerro de ouro – o qual foi nada menos do que um rompimento na aliança do povo com Deus.
Em trajetórias de vida, momentos de ruptura nos modos de ajustamento existentes podem ser entendidos como propulsores de desenvolvimento, visto que ao buscar se reorganizar internamente, o indivíduo também participa na reorganização do seu entorno.
De acordo com essa teoria psicológica, ruptura e construção estão intrinsecamente relacionadas. Ao se romper algo, resta-nos juntar os fragmentos daquilo que foi rompido e decidir se queremos reconstruir ou descartar o que restou. No caso da filosofia japonesa, quando uma xícara se quebra, adota-se a técnica do “kintsugi”, que se trata de juntar os cacos cerâmicos e buscar reparar o dano, bordando em ouro as cicatrizes. Eles o fazem, com a compreensão de que o resultado nunca será ter de volta o objeto que foi rompido, mas a produção de um novo artefato, único e irrepetível, e, portanto, de valor inestimável. Da mesma forma, a tradição judaica de romper a taça ao momento do casamento convida os noivos a se envolverem em um processo permanente de construção de um lar e de uma família. E nesse esforço comum, cada um(a) deve aportar algo de si.
As tábuas quebradas por Moisés tampouco foram descartadas, mesmo depois de Moisés ter entalhado as outras duas tábuas. Tanto as novas quanto os fragmentos das primeiras tábuas acompanharam o povo de Israel pelo deserto dentro da Arca da Aliança, e mais tarde foram transferidas ao Templo construído em Jerusalém.
Uma correlação entre a raiz da palavra ‘construir’ (livnot, em hebraico) e o radical hebraico da palavra ‘compreender’ (lehavin) pode aportar nessa reflexão. Tal correlação abre caminho para pensar que o processo de construção se desenvolve em paralelo a um processo de compreensão e ampliação de consciência. Betsalel, o artífice do mishkán (o santuário móvel) foi dotado de “um espírito divino de habilidade, talento e compreensão” para construir [Ex.31:3].
Antes dele, o povo já tinha participado em outra construção, mas desprovidos de compreensão. O resultado foi um bezerro de ouro, que começou a ser venerado pelos israelitas como se este tivesse sido o responsável pela sua libertação do Egito. Esse evento nos evidencia que as pessoas nem sempre se unem para algo positivo. O povo uniu esforços e suas joias para construir um bezerro de ouro. A crítica social desenvolvida pela psicologia das massas pode ser útil aqui para diferenciar esse esforço de construção com outro, convocado por Moisés: a construção do mishkán.
Moisés convoca o povo a participar em uma construção que se dará sobre bases igualitárias: cada pessoa entra com meio shekel, sem distinção de classe social. Deus diz a Moisés: “Quando você fizer um censo (…) Isto é o que todo aquele que entrar nos registros pagará: meio shekel. (…) O rico não pagará a mais e o pobre não pagará menos…” [Ex. 30:12-15]. De certa maneira, a proposta parece ser a construção das bases de uma sociedade sustentadas em um critério humanizador, porque cada pessoa conta (censo) e tem o mesmo valor (meio shékel).
Que sempre estejamos dispostos a colaborar em ações comunitárias que se dediquem a construir laços de fraternidade entre as pessoas; que saibamos reparar o dano produzido por nossas ações que porventura forem desprovidas de perícia ou compreensão; e que possamos ler através das cicatrizes e emendas dos fragmentos de quem somos a trajetória percorrida até aqui.
Shabat Shalom,
Kelita Cohen
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