Muitas vezes falamos sobre nossa tradição usando a metáfora de uma corrente: todos e cada um de nós, em cada geração, como elos reforçando o laço, preservando os valores, transmitindo narrativas e dando continuidade ao nosso povo.
Houve momentos em que tememos que esse laço se quebrasse. Muitos de nós vivemos com o medo e a consciência do risco de que o que parece inquebrável seja perdido, esquecido.
A parashá desta semana nos apresenta a uma mulher com nome: Serach bat Asher, neta do patriarca Jacó que, para mim, representa de certa maneira a memória coletiva de nosso povo.
Serach é mencionada nesta parashá na contagem dos israelitas que desceram ao Egito, fugindo da fome que assolava a Terra de Israel em busca de um futuro melhor: “Filhos de Asher: Imnah, Ishvah, Ishvi e Beriach, e sua irmã Serach…” (Gênesis 46:17). Ela também é citada na listagem dos israelitas nas estepes de Moab, aqueles que saíram da escravidão no Egito, novamente com a esperança de um futuro na terra prometida: “Descendentes de Asher por seus clãs: De Imnah, o clã dos Imnitas; de Ishvi, o clã dos ishvitas; de Beriah, o clã dos beriitas. Dos descendentes de Beriah: De Heber, o clã dos heberitas; de Malchiel, o clã dos Malchielitas. O nome da filha de Asher era Serach” (Números 26:44-46). Apesar disso, ela não participa de nenhuma narrativa, nem se diz mais nada sobre ela. O que a Torá nos ensina sobre Serach é seu nome, sua ascendência e o fato de que viveu desde a chegada ao Egito com os irmãos de José até a saída do Egito liderada por Moisés e seus irmãos Aarão e Miriam. Segundo esse relato, Serach viveu mais de 400 anos.
É interessante e até mesmo surpreendente a quantidade e profundidade de tradições midráshicas sobre essa mulher que se torna uma personalidade fascinante. Segundo nossos sábios, ela foi abençoada com muita sabedoria e conhecimento de mundo, que ela utilizou para ajudar o povo de Israel como fosse necessário. O midrash diz, inclusive, que foi ela quem contou a Jacó que José estava vivo, ao dizer “José, meu tio, não morreu, ele vive e governa toda a terra do Egito”.
Os rabinos atribuíram a Serach um papel importante na identificação de Moisés como o redentor que libertaria os israelitas do Egito. O midrash nos conta que foi entregue a Abrahão o segredo sobre a redenção do Egito. Ele o transmitiu a Isaque, Isaque a Jacó e Jacó a José. José transmitiu o segredo da redenção a seus irmãos, dizendo a eles (Gênesis 50:25): “Quando Deus tiver percebido vocês, levarei daqui meus ossos”. E Asher, irmão de José e pai de Serach, transmitiu-o à sua filha. Quando Moisés e Aarão se aproximaram dos anciãos hebreus e realizaram milagres, eles foram a Serach e lhe disseram: “Certo homem veio até nós e realizou tais e tais maravilhas”. Ela respondeu: “Isso não faz sentido”. Logo disseram a ela: “ele também disse ‘Quando Deus tiver percebido você’”. Ela disse: “esse é o homem que vai redimir Israel do Egito, porque ouvi de meu pai ‘Nele vai perceber’”. Então acreditaram imediatamente em seu Deus. No relato midráshico, Serach ajudou Moisés a cumprir o juramento feito a José, de ser enterrado com seus ossos na Terra de Israel. Moisés se aproximou dela e lhe perguntou. Ela respondeu: “colocaram-no aqui. Os egípcios fizeram para ele um caixão de metal e o afundaram no Nilo, para que suas águas fossem abençoadas”. Moisés foi então ao Nilo, pôs-se de pé na margem a chamou os ossos de José. O caixão de José imediatamente subiu à superfície e Moisés o pegou (Talmud da Babilônia, tratado Sotah 13a).
A parashat Vaigásh me faz pensar no importante lugar da memória em nossas vidas como indivíduos, como famílias e como povo. Como José se lembrou de seus irmãos, como os irmãos se lembraram de José; como podemos moldar nossa memória, escolher a interpretação de nossa realidade e de nosso passado para criar um futuro que seja não só possível mas melhor para todos. Como os pais nunca se esquecem de seus filhos e quais são os laços de amor inquebráveis, como entre Jacó e José. Como Serach vive, não apenas para contar uma história, mas para participar ativamente dela, com memória e sabedoria, apostando num destino conjunto.
Todos e cada um de nós somos parte ativa e presente na construção de memória, e seremos um dia recordados. Que nossas vidas sejam bênção, ação, memória e continuidade.
Shabat shalom,
Rabina Tati Schagas