A justiça é geralmente representada de olhos cobertos. Segundo explicam, essa imagem indica a necessidade de imparcialidade. 

Mas a justiça deve ser cega? Ou deve reconhecer justamente a singularidade de cada parte envolvida? Qual caminho trará mais justiça, mais verdade e maior bem?

Acredito que a pergunta ultrapassa os limites do tribunal e do judiciário, e se aplica à forma como todas e todos ouvimos tudo.

Será que precisamos da maior objetividade ou da maior subjetividade? 

Entre os ensinamentos finais, Moisés diz na parashá da semana: “Não conheça rostos no juizo”. A princípio, diríamos que o texto coincide com a imagem da justiça cega. Porém, o midrash nos apresenta duas ideias, a partir da gramática hebraica do verbo conhecer, que é o mesmo radical que o verbo alienar: uma interpretação diz “Não reconheça os rostos envolvidos”, a outra diz: “Não se aliene deles”. 

A estudiosa Dena Weiss aponta que ambas ideias buscam imparcialidade por caminhos opostos. Vejamos, um caminho pretende ser imparcial se afastando de todos os detalhes pessoais e procurando ouvir com a maior objetividade. O outro sustenta que compreendendo o máximo possível da subjetividade de cada parte envolvida , isto é, de cada testemunha e de cada protagonista, haverá chances maiores de maior verdade. A imparcialidade consiste em aprofundar e se envolver da mesma forma com todos e com tudo e, não em não se envolver com ninguém.

Na parashá da semana, Moisés começa seu último discurso e nele, Moisés escolhe, subjetivamente, os episódios que relerá e re-contará ao povo, assim como escolhe quais serão as ênfases e o que ensinará ou sugerirá aprender de cada experiência. E, mais ainda: 

Ele muda deliberadamente a atribuição de alguns fatos.

Micah Goodman, no seu maravilhoso curso sobre o Livro Devarim, disponibilizado pela nossa Academia Judaica com subtítulos e comentários, sugere que um dos objetivos da versão de Moisés é tirar a centralidade dele mesmo para brindar mais autonomia nas vésperas de seu desligamento.

Todavia, o primeiro evento por ele recontado parece indicar uma direção oposta. No livro de Êxodo, conta-se que o sogro, Itró, repreendeu Moisés ao vê-lo centralizar todo o poder, e lhe indicou que nomeie juízes de assuntos menores. Moisés reproduz esse episódio na nossa parashá dizendo: “Em aquele momento eu disse: ’como poderei carregar tudo sozinho?, nomeiem vocês juízes de assuntos menores’”. Ou seja: o relato de Moisés atribui a ele, a sua iniciativa, justamente algo que aconteceu por iniciativa do sogro!

Acredito que Goodman tem razão mesmo assim. Moisés poderia estar fazendo uma apropriação mais profunda e sutil. Não se trata de tirar o mérito de Itró, trata-se de assumir sua parte na história, de compreender o momento no qual ele próprio incorporou a leitura do Itró, como a viveu e de que forma resolveu e conseguiu implementá-la. Colocou seu sujeito mais íntimo na história para acessar sua verdade mais profunda. A única que realmente pode reconhecer em tudo. A verdade dele próprio.

Que possamos ser protagonistas de tudo que escutamos e dizemos, que lemos e escrevemos, colocando todo nosso ser subjetivo à disposição, com honestidade e sensibilidade, a fim de nos aproximar do mais verdadeiro e do melhor. 

Rabino Dr. Ruben Sternschein