Estamos iniciando o segundo livro da Torá — o Shemót, Êxodo. Aquele livro que terminamos de ler, Bereshit (Gênesis), além da criação do mundo, conta a história de uma família, a família dos patriarcas. Esse primeiro livro da Torá começa com o relato de um único homem e uma única mulher e termina com diversos capítulos sobre Abraão, Sara e todos seus descendentes e agregados.
Em Shemót acontece algo diferente. A narrativa em torno de uma única família será abandonada e dará espaço à saga de toda uma nação. Não mais estará no centro da história um único núcleo familiar, mas as dificuldades e conquistas de todo o povo de Israel.
Vaiacom melech chadásh al mitsráim asher lo iada et Iossêf. “E surgiu um novo rei sobre o Egito que não conheceu a José”. Embora essa não seja a primeira frase do livro de Êxodo, é ela que resume a atmosfera de tudo aquilo que estava por vir.
Rashi, comentarista francês do século XI, nos remete a uma discussão no Talmud entre os sábios Rav e Shmuel. Um acreditava que o versículo citado refere-se à ascensão de um novo governante sobre a terra do Egito. O outro pensava que ele continuava o mesmo e que apenas seus decretos foram renovados. O primeiro sábio lê o versículo de forma literal e interpreta as palavras “novo rei” indicando a posse de um novo governante. O segundo entende a mesma expressão como uma indicação de que o governante permanecia o mesmo, mas suas convicções haviam-se renovado.
Sabemos que Iossef teve um papel essencial na vida do Egito e que graças a sua ajuda, o Egito pôde enfrentar uma crise que atingiu toda a região. Na época de José, o Povo de Israel gozou de todas as mordomias em terras egípcias como forma de agradecimento pela atuação daquele filho de Israel.
Será que o “novo rei” não conhecia Iossef e nunca soube da sua existência? É difícil de acreditar. O Egito é considerado uma grande civilização que se preocupou com a documentação e perpetuação de cada evento marcante em sua história nacional. Acredito que o “novo rei” sabia da existência de José e conhecia muito bem o papel que desempenhara na salvação da economia egípcia. Creio, então, que a segunda interpretação talmúdica é a mais correta.
O rei não era novo, mas suas intenções renovaram-se. Ao ver o crescimento do Povo de Israel em terras egípcias, o velho rei transformou-se. O governante que conhecia Iossef e sabia de tudo o que havia acontecido no passado, passou a não reconhecê-lo mais. No momento que assim interessou, o governante tornou-se um “novo rei” e ignorou tudo o que aquele descendente da casa de Israel havia feito para salvar a terra do Egito.
Ao ignorar nosso passado, o Faraó tentou nos condenar a sermos sempre uma família. Quando deixou de reconhecer os feitos de Iossêf, o ditador egípcio queria nos impedir de ter um passado em comum para que nunca nos transformássemos em um povo.
Afinal de contas, povo é um conjunto de famílias unidas por uma história comum e entrelaçadas pelos mesmos objetivos. Que saibamos vencer o Faraó e passar de Bereshit para Shemót. Que possamos nos comportar como um povo, como uma comunidade e não apenas um emaranhado de famílias.
Shabat Shalom,
Rabino Michel Schlesinger