Valorização da vida no judaísmo

Revisitando o sacrifício de Isaac 

Uma interpretação contemporânea da passagem bíblica que descreve o sacrifício de Isaac, ou “o aprisionamento de Isaac”, como o nome hebraico akedá sugere, nos oferece uma ótima oportunidade para analisar o valor que o judaísmo atribui à vida.

A leitura literal da história sugere que tudo se tratava de um teste, uma experiência. Assim está escrito: “Vehaelohim nissa et Avraham”, e Deus colocou Abraão em prova. Desta maneira, Deus queria saber se o patriarca tinha fé absoluta e ele passou no teste em que outros talvez seriam reprovados.

Outra possibilidade foi explorada. Talvez toda a história seja um protesto contra sacrifícios humanos. Assim como os primeiros filhotes do gado eram oferecidos a deuses, havia uma prática recorrente de se oferecer o primeiro filho em altares de sacrifícios. Assim, toda a narrativa tem por objetivo marcar, com cores extremamente fortes e de maneira muito dramática, a noção de que israelitas não realizam sacrifícios humanos.

Seria, o objetivo da passagem bíblica, ensinar que a voz de Deus deve estar acima da consciência humana? Quando Deus nos ordena algo, mesmo que nos pareça absolutamente absurdo, devemos seguir cegamente? Algo que o filósofo Kierkegaard, teólogo dinamarquês do século 19, chamou de “suspensão teológica da ética”. Esta possibilidade assusta muito porque abre as portas para um fanatismo sem fronteiras. 

Acredito em um judaísmo que prega justamente o contrário. A religião não anula a consciência humana. Ao invés disso, é justamente por meio de nossa responsabilidade ética que nos tornamos indivíduos religiosos.

Uma interpretação surpreendente para o sacrifício foi sugerida por Theodor Reik, psicanalista austríaco que viveu no início do século 20. Reik traçou um paralelo entre a história da akedá e os rituais de passagem em diversas sociedades antigas. Um menino que abandonava a infância e se tornava adolescente era afastado da companhia de mulheres e era submetido a alguma experiência de ameaça a sua vida, que muitas vezes incluía a simulação de sua morte. Depois disso, era recebido como um homem capaz de assumir responsabilidades dentro de sua tribo. Segundo essa possibilidade, o “aprisionamento de Isaac” foi uma cerimônia antiga de Bar Mitsvá (ritual de maioridade judaica do menino, que ocorre aos 13 anos de idade) semelhante a rituais indígenas de nossos dias que incluem caminhar sobre carvão em brasa, ser picado por formigas venenosas ou caçar animais ferozes.

Judeus que sofreram perseguições, em gerações posteriores, leram a akedá de outra forma. Comunidades medievais perseguidas enxergavam a si próprias como reproduções do drama de Isaac sem, no entanto, contar com a voz redentora que ordenou Abraão largar a faca poupando a vida do seu filho. Existe ainda um midrash que sugere que Isaac foi efetivamente sacrificado e depois ressuscitou. 

Nossa tradição religiosa pluralista permite que não escolhamos uma única interpretação como correta tendo que descartar as demais. Ao contrário disto, o judaísmo nos convida a aceitar a existência de diversas interpretações verdadeiras. Mais do que isso, somos incentivados por nossa cultura multifacetada a criar nossas próprias interpretações.

Gostaria de sugerir uma leitura particular da akedá e retomar a leitura literal da história que diz: “Vehaelohim nissa et Avraham”, e Deus colocou Abraão em prova. Em minha opinião, o aprisionamento de Isaac foi um teste de Deus e Abraão foi reprovado. Deus queria verificar se aquele homem crente era capaz de colocar seu humanismo no mesmo patamar de sua fé e Abraão falhou. E por que Deus fez esse teste? Porque Ele sabia que nas futuras gerações muitas pessoas fariam crueldades em nome de Dele. Muitos homens e mulheres diriam ter ouvido deuses que ordenam a guerra e a destruição e agiriam em nome dessas divindades. Nosso Deus queria transmitir a mensagem de que religião não exclui questionamento. 

Vivemos em um mundo em que o fanatismo religioso é uma realidade em todas as tradições. A história do sacrifício é, ao meu ver, um alerta poderoso de que devemos ser pessoas de fé, escutar e seguir a voz de Deus e ao mesmo tempo, para que passemos no teste em que Abraão foi reprovado, precisamos permanecer humanos. Nossa crença em Deus não pode suspender nossa ética. Muito pelo contrário, quanto mais defendermos a vida, mais próximos estaremos Daquele que é a origem de toda vida.

Se prestarmos a atenção nos chamados de Deus, perceberemos que eles caminham em um só sentido. Nossa tradição religiosa valoriza a vida acima de tudo. A cultura judaica vê na família a instituição mais sagrada que existe. O amor ao próximo é um bem inquestionável. Ser bom judeu significa praticar ticun olam – aprimorar o mundo todos os dias.

Que possamos ouvir as ordens de Deus e quando sentirmos que alguma delas se opõe àquilo que nossa consciência nos diz ser correto, não escutar significará ser aprovado no teste da vida.

 

Rabino Michel Schlesinger