A parashá desta semana traz a culminação das calamidades que afligiram os egípcios às vésperas do êxodo hebraico: tempestade de granizo, nuvem de gafanhotos, escuridão e morte dos primogênitos.
Depois do granizo e do anúncio dos gafanhotos, o faraó pergunta: “Quem são os que irão ao deserto louvar a Deus?”, ao que Moisés responde: “Iremos todos nós, independentemente de condição social” [Ex. 10:8-9]. As palavras de Moisés dão pistas da sociedade que ele almejava constituir, logo, de ver tanta injustiça e desigualdade social no Vale do Nilo.
Moisés poderia ter aceitado a oferta de ir com uma parte das pessoas, mas ele resistiu. Era ‘um por todos e todos por um’. Quase podemos escutar em suas palavras a frase “ninguém solta a mão de ninguém”, que viralizou nas redes sociais há alguns anos. Conta-se que essa fala ecoava dos barracos improvisados do curso de Ciências Sociais da USP, durante a ditadura militar, como “grito de pavor” quando os agentes do regime cortaram a luz para invadir o local.
Moisés, como líder, velava por seus liderados em forma equânime: “todos nós, independentemente de condição social”. Ele não advogava apenas pelos hebreus. Conta a narrativa [Ex. 12:38], que além dos israelitas, “uma multidão misturada de gente subiu com eles”. Plaut comenta que estas eram pessoas da base do estrato social do Egito, que aproveitaram a oportunidade para escapar de seu destino.
Hoje, recordamos as atrocidades de um passado não muito distante, em memória das vítimas do Holocausto. Como coletividade, lembramos as 6 milhões de vítimas judias, e junto a elas, as milhares de vítimas de outros coletivos, como ciganos, testemunhas de Jeová, da comunidade LGBTQ, negros, pessoas com deficiência e ativistas políticos contrários aos ideais nazistas. Assim como a Shoá foi uma tragédia humana da qual nós, judias e judeus, assumimos o compromisso de recordar para que não se repita, a saída do Egito representa a liberação humana da opressão, liberdade essa que nós levamos como estandarte na nossa liturgia e na nossa tradição até os dias de hoje.
Recordar é um verbo que se conjuga na voz ativa. Enquanto dirigimos nossos carros, olhamos para o retrovisor e para o nosso entorno ao mesmo tempo, sem perder de vista o que temos pela frente e aonde nos dirigimos. Assim também é o exercício que fazemos de memória. Ao analisar o passado e o mundo à nossa volta, no presente, podemos traçar paralelos que nos permitem prevenir atrocidades e promover liberdade e justiça social a quem delas mais precisam.
No podcast “Dez minutos de Torá”, o rabino Rick Jacobs pergunta como podemos usar a estrutura moral da história da saída do Egito para entender e contextualizar a ideia de reparações devidas aos afrodescendentes que foram arrancados de suas terras, trazidos para cá e escravizados?
Não se trata de comparar ou equivaler a escravidão egípcia com a experiência dos negros no Brasil, mas de ver que há em nossa tradição leituras críticas possíveis das nossas histórias para pensar a reparação ou mesmo a atuação inspirada em Moisés, diante da opressão. Como líder egípcio e possível sucessor ao trono do Faraó, Moisés vê no oprimido seu irmão e toma partido pelo mais vulnerável.
Nesta semana, o Brasil deixou novamente o mundo em perplexidade. Desta vez, pela condição dos povos originários Yanomami na Amazônia brasileira.
A praga que se seguiu à dos gafanhotos sobre o Egito foi a da escuridão – “uma espessa escuridão que podia ser tocada, na qual ‘as pessoas não podiam ver umas às outras… ninguém podia se mover’” [10:21-23]. Não poder ver o outro e não poder ser visto, no meio do terror que inunda cada um pela escuridão imobilizadora, pode ser considerado o auge da calamidade para uma sociedade.
A morte de 570 crianças por desnutrição, em uma população Yanomami de 26.700 pessoas, não deixa dúvidas de que a situação é catastrófica. Estamos diante da décima e mais cruel praga narrada na parashá: a morte dos primogênitos – considerando os povos originários aqueles que chegaram antes de nós nesta terra que acolheu a tantos sobreviventes da Shoá.
- Que a luz do entendimento dissipe a escuridão imobilizadora e que nos deixa por vezes em cegueira;
- Que possamos olhar com seriedade e responsabilidade o que acontece à nossa volta, no presente;
- Que os nossos textos e a nossa tradição nos ajudem a ver o outro desde o seu lugar da invisibilidade e do silenciamento;
- Que possamos conjugar a memória na voz ativa em defesa do oprimido, sem soltar a mão de ninguém;
- Que possamos reverenciar a memória das vítimas da Shoá e de outras calamidades, e nos posicionarmos frente às injustiças que continuam vitimizando pessoas em nossos dias.
Shabat Shalom!
Kelita Cohen
Leia mais comentários sobre a parashat Bô:
Deixa meu povo ir! Traga-os de volta! | Parashat Bô
Deixa meu povo ir! – o clamor por libertação das pessoas mantidas reféns em Mitsráim introduz a parashá desta semana: a Parashat Bô. שַׁלַּח עַמִּי “shlach ami” Deixa meu povo ir![1] Não foi a primeira vez que estas palavras foram exclamadas no texto da Torá...
Escravos de ontem e escravos de hoje | Parashat Bô
Se você buscar na internet pela pessoa que primeiro formulou o conceito de que “um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, descobrirá mais de uma versão sobre sua autoria: há quem diga quem tenha sido Sir Edmund Burke (1727-1797), e quem afirme que...
Deveres e direitos de vítimas e agressores | Parashat Bô
A próxima semana será marcada pelo Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto decretado pela ONU, que neste ano comemorará 76 anos da entrada do exército aliado no Campo de Auschwitz. Entrada, não libertação, pois quem lá estava seria para sempre uma...