Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído. Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (…) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18 de dezembro. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

 

Chag Urim Sameach!

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b

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