Todas as pessoas sonham. Diz-se das pessoas muito sonhadoras, inclusive, que ‘vivem no mundo da lua’ e que são incapazes de ver a realidade como ela é. De outras, por sua racionalidade exacerbada, são tidas como conectadas à realidade a tal ponto que não acreditam em sonhos. Há ainda um terceiro grupo que é capaz de sonhar, ao mesmo tempo em que vê no sonho um modo de transformar a realidade.

Faraó e José (Yossef) são sonhadores. Na porção da Torá desta semana, o faraó tem um sonho (Gen. 41:1), mas não sabe o que fazer com ele. O copeiro e o padeiro também são sonhadores (v. 11). Mas eles não apenas não têm a capacidade de compreender seus sonhos, como tampouco têm poder sobre seus destinos. 

José tem a capacidade de entender os sonhos e de transformar a realidade a partir da sua compreensão. José tem a estratégia, o faraó tem os meios para realizar e alcançar o objetivo proposto. José é um bom ouvinte e não desacredita o sonho alheio. Ao contrário, vê neles uma oportunidade para colaborar e fazer a diferença. O faraó acredita na capacidade de José e coloca em suas mãos as ferramentas necessárias para alcançar os objetivos que lhe são comuns. Juntos, o faraó e José têm o poder sobre seus destinos e sobre os destinos dos seus povos. Essa é uma evidente parceria de sucesso.

O historiador israelense Yuval Noah Harari, em seu livro Homo Deus, atribui o poder do ser humano de dominar a natureza e de alterá-la significativamente à sua capacidade de trabalhar em parceria. E, segundo o autor, essa capacidade se deve em larga medida, à sua capacidade de trabalhar mentalmente com abstrações. Que mais abstrato do que os sonhos? 

Há pessoas que esperam que milagres aconteçam para que seus sonhos se transformem em realidade. E parodiando o rabino Rogério em seu comentário da parashat Vaieshev na semana passada, sim, há sonhos que acontecem sem a intervenção humana, quase que por um milagre. Outros sonhos, como o que foi compartilhado pelo faraó e José, ou mesmo o sonho aspirado pelos Macabeus, dependem da ação humana. Nesse episódio, um patriarca (Matitiahu) e seus filhos também tiveram um sonho: restabelecer o controle dos lugares sagrados, liberar o povo da opressão exercida por um poder externo e assumir novamente a autonomia para expressar sua religiosidade, cultura e tradição milenar.

Lutaram por seu sonho compartilhado e conseguiram realizá-lo. A realidade se transforma à medida que nós acreditamos ser possível a materialização dos nossos sonhos e atuamos para que as coisas aconteçam.

Tendo citado um exemplo ocorrido há 27 séculos (com José no Egito), outro há aproximadamente 2.200 anos (a vitória dos Macabeus sobre os selêucidas), um exemplo ainda mais próximo de nós em termos temporais pode ser capaz de demonstrar a atemporalidade da máxima ‘a união faz a força’. Há seis décadas, Martin Luther King proferiu a célebre frase “I have a dream”, enquanto marchava ao lado de tantos outros líderes – como Abraham Joshua Heschel –, transformando a vida de milhões de pessoas, através da conquista de direitos civis à população negra dos Estados Unidos.

Por tudo isto, sem menoscabar o simbolismo do óleo, do sevivon e dos latkes, talvez apenas em português seja possível pensar nos sufganiot como o símbolo de Chanucá por excelência. Isso porque, no vernáculo, esses bolinhos fritos recheados de creme e geleia recebem o nome de ‘sonhos’. Não estaríamos celebrando o milagre hoje, se não fosse porque um dia alguém sonhou um sonho e foi capaz de mobilizar a outros a lutar juntos para mudar uma realidade.

Que tenhamos sempre a capacidade de sonhar… juntos. Porque, como cantou uma vez Raul Seixas, “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”. 

 

Shabat Shalom e Chanucá Sameach!

Kelita Cohen

 

Ainda oportuno, compartilho o poema “Sonho impossível”, de Fernando Pessoa:

“Eu tenho uma espécie de dever,

de dever de sonhar,

de sonhar sempre,

pois sendo mais do que

uma espectadora de mim mesma,

eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.


E assim me construo a ouro e sedas,

em salas supostas, invento palco, cenário,

para viver o meu sonho

entre luzes brandas

e músicas invisíveis.

 

Sonho Impossível

 

Sonhar mais um sonho impossível

Lutar quando é fácil ceder

Vencer o inimigo invencível

Negar quando a regra é vender

Sofrer a tortura implacável

Romper a incabível prisão

Voar num limite provável

Tocar o inacessível chão

É minha lei, é minha questão

Virar este mundo, cravar este chão

Não me importa saber

Se é terrível demais

Quantas guerras terei que vencer

Por um pouco de paz

E amanhã se este chão que eu beijei

For meu leito e perdão

Vou saber que valeu

Delirar e morrer de paixão

E assim, seja lá como for

Vai ter fim a infinita aflição

E o mundo vai ver uma flor

Brotar do impossível chão”.

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