Algumas porções semanais da Torá levam o nome de pessoas: Nôach, Itró, Côrach, Pinchás, Balac. Mas a única que tem o nome de uma mulher é a parashá desta semana: Chaiei Sará (literalmente, “vidas de Sara”). Vale lembrar que a história da vida dessa mulher é de fato contada nas duas porções anteriores: Lech Lechá e Vaierá. 

Paradoxalmente, a porção que anuncia se tratar da vida, descreve nada mais do que a sua morte e toda a movimentação de Abraham para sepultá-la. Certamente é uma dicotomia interessante entre a vida e a morte. Em certa medida, faz sentido pensar que só é possível determinar quanto tempo viveu uma pessoa a partir da sua morte. Mas se fazer-nos saber o tempo de vida fosse a única intenção do narrador do texto bíblico, teria sido suficiente algo mais enxuto; algo como ‘E a vida de Sara foi de 127 anos’. Agora vejamos como aparece no texto da Torá:

“E foram as vidas de Sara: 100 anos e 20 anos e 7 anos. São os anos das vidas de Sara. E Sara morreu…” (Gen. 23:1-2).

Rashi, o principal comentarista medieval da Torá, destaca que a reiteração da palavra “shaná” (ano) em frente a cada numeral significa que cada termo deve ser interpretado separadamente. Dessa forma, em sua releitura explicativa, teríamos: “aos 100 anos estava como uma mulher de 20 no que diz respeito ao pecado… e aos 20 anos, era tão bela como uma criança aos sete.”

É certo que a beleza de Sara já fora descrita em outros momentos (como quando Abraham e Sara viajam para o Egito e o faraó a toma para compor o seu harém). No entanto, ao ler novamente as palavras da Torá com uma outra lente interpretativa que possa ver além da sensualidade do corpo, encontro que talvez a primeira ruptura significativa na vida de Sara tenha se dado aos 100 anos, e a seguinte aos 120 anos, para finalmente descrever sete anos de velhice, com a inocência e serenidade tão próprias de quem já não precisa correr.

Logo a seguir está a descrição da morte, no singular. Isto porque não se morre duas vezes, mas viver é um verbo que se conjuga no plural em sentido lato, como nas palavras do poeta Guimarães Rosa. Viver pressupõe a presença de outros. Vivemos de fato quando estamos em comunidade. Eternizamos na memória momentos que vivemos ao lado de pessoas que amamos. Vivemos muitas vidas através das histórias das personagens com as quais nos identificamos nos livros que lemos. 

Depois de tantas experiências vitais, a Torá nos descreve a morte de Sara no singular, sem repetições ou adjetivos. Os próximos 19 versículos estarão completamente dedicados a descrever a saga de Abraham por adquirir um lugar para sepultar dignamente a sua amada, assegurando desde aquele momento a inviolabilidade do seu túmulo – como mais adiante será legislado no código jurídico judaico. 

Avraham não a sepulta em uma terra alheia. Ela a adquire, deixando saber a todos – naqueles dias e ainda em nossos dias – que aquela terra havia passado legitimamente às mãos de Avraham e sua descendência. Sara é, portanto, a primeira pessoa do povo judeu a ser sepultada na terra de Israel. Não parece ser sem intenção o esforço do narrador do texto bíblico em deixar registrado, com a descrição precisa da data e do local, bem como do processo complexo de compra e venda da terra e transferência de titularidade. Em Kiriat Arba – hoje Hebron – terra de Canaã, foram fundadas as bases da nossa conexão milenar com Eretz Israel. 

Que possamos honrar a bendita memória da matriarca Sara e do patriarca Avraham mantendo acesa nos nossos corações e na nossa mente a conexão com uma história que nos é própria e que nossas ações fortaleçam o nosso vínculo com Israel.

 

Shabat Shalom,

Kelita Cohen

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