O livro de Devarim como um todo é conhecido por ser um reconto da Torá, em referência aos quatro livros predecessores. E, por isso mesmo, esse livro é chamado “Mishnê Torá” (literalmente, segunda Torá). No entanto, ao recontar, Moisés parece não exatamente repetir. Em certos momentos ele inova, trazendo mitsvot que não haviam sido mencionadas antes. 

A parashá que lemos nesta semana, Ki Tetsê, é um bom exemplo dessa inovação. Das mais de 70 mitsvot descritas nesta porção, boa parte aparece pela primeira vez na Torá. Por serem mitsvot com temáticas tão diversas (envolvendo o direito penal, comercial, de família e outros), o exercício nesta leitura foi buscar algum aspecto comum entre elas e que de alguma forma fosse transcendente ao tempo e ao espaço. A responsabilidade pelo outro é um deles. 

Encontramos essa responsabilização quando menciona que temos a obrigação de fazer um parapeito na sacada das nossas casas para evitar que alguém venha a cair de lá e, portanto, sejamos culpados por seu sangue (22:8); temos a responsabilidade pela restituição ao seu dono de qualquer bem que encontrarmos perdido (22:1-3); somos responsáveis até mesmo por um animal caído na rua não nos sendo permitido fazer vistas grossas, senão que temos a obrigação de ir em seu auxílio (22:1-3); se alguém que, fugindo de seu opressor, buscar refúgio em nossa casa, passamos a ser responsáveis por esse refugiado, não podendo entregá-lo ao opressor e tampouco podemos oprimi-lo (23:16-17); assim mesmo, não nos é lícito oprimir o trabalhador, retendo-lhe ou atrasando o seu salário, pois aí reside nossa responsabilidade para com sua subsistência e a de sua família (24:11); e finalmente, somos responsáveis pelas pessoas em condição de vulnerabilidade (sempre ilustradas na Torá nas figuras do estrangeiro, do órfão e da viúva) e temos o dever de velar pelos seus direitos (24:19). 

Às vésperas de entrar na terra de Canaã para construir, de fato, uma sociedade, Moisés exorta aos israelitas: “Lembre-se que fostes estrangeiro na terra do Egito!”. Não venham reproduzir na nova estrutura social padrões de desigualdade e injustiça.

Mas nem tudo são flores nesta porção. Algumas situações descritas por Moisés como lei parecem conduzir a um caminho completamente oposto. Uma das leis enunciadas determina que os pais devem levar o filho rebelde e transgressor aos anciãos para que estes anunciem que é filho rebelde, a fim de que o filho seja apedrejado até a morte como um ato exemplar (21:18-21). A visão que imputa exclusivamente ao indivíduo a responsabilidade por uma conduta que desvia da chamada normalidade social é, além de simplista, uma fuga de responsabilidade da família, do estado e da sociedade, como é entendido o fenômeno pela criminologia crítica.

Nessa vertente, a sociedade é apresentada não apenas como cenário passivo no qual a conduta desviante se manifesta, mas como sendo ela própria um fator criminogênico, agente da ação transgressora. Onde fica então a responsabilidade pelas nossas crianças e jovens, cujo valor se mostra tão evidente em outros enunciados desta parashá?

O próprio Moisés, em um momento anterior, nos havia ensinado com seu exemplo o que um pai ou tutor faz quando seu filho ou tutelado transgride uma lei. Quando o povo confeccionou o bezerro de ouro, a reação divina foi a de aplicar a pena capital (karet), cortando o povo. Mas Moisés, mesmo conhecendo a lei divina (Deut. 17:2-5) de que servir a outros deuses era uma abominação passível de pena de morte por apedrejamento, intercede pelo povo, oferece sacrifício por sua transgressão e se coloca como escudo entre a ira divina e o povo transgressor (Ex. 32:32).

A infração juvenil é entendida na sociologia jurídica por teóricos como Cloward-Ohlin e Sutherland como sendo uma resposta possível a múltiplos fatores, tais como o acesso desigual às riquezas frente a uma economia baseada no capital e em uma cultura de consumo, ou a um sistema de valores sociomorais frágil, só para citar alguns. Desta feita, sem tirar do jovem a sua agência e, portanto, a responsabilidade pelos seus atos, tampouco podemos nos eximir, como sociedade, da responsabilidade para com a nossa juventude. 

E ainda que a legislação brasileira tenha avançado na garantia de direitos à criança e ao adolescente, inclusive quando são estes autores de atos infracionais, o delito continua sendo abordado pela lógica do controle social, atribuindo a certos indivíduos e grupos o lugar do transgressor, ao passo que isenta a sociedade de toda e qualquer responsabilidade pela produção das infrações juvenis, quer pela via da exclusão social, quer pela criminalização a priori de uma parcela da nossa juventude por sua condição socioeconômica ou pela cor da sua pele. 

No período talmúdico, os nossos sábios já haviam avançado em matéria legislativa com relação ao princípio da responsabilidade, mencionado anteriormente. “Kol Israel arevim ze la’ze” (Talmud Bavli, Shavuot 39a) – cada um de nós é responsável uns pelos outros. Os sábios na Guemará interpretam que, ao que parece, uma única transgressão no mundo nos torna a todos passíveis de punição, porque de alguma maneira somos responsáveis uns pelos outros.

Há quem pense: “eu não faço nada e, portanto, não transgrido”. No entanto, o judaísmo é ação. Somos ensinados que transgredimos quando somos omissos. Não podemos nos omitir à responsabilidade de proteger as nossas crianças e jovens da violência explícita e silenciosa, da exclusão social e da inclusão perversa, dos tiros de fuzis e do silêncio dos bons, parafraseando Martin Luther King. 

  • Que possamos dizer como o cabeça de tribo Yehuda a seu pai Yaakov: “Anochi eervenu” (heb.: אָֽנֹכִי֙ אֶֽעֶרְבֶ֔נּוּ – Gen. 43:9), “eu serei responsável por ele” – referindo-se ao cuidado redobrado que teria com a segurança e a integridade do seu irmão caçula na viagem ao Egito.  
  • Que possamos rezar com as nossas pernas como Abraham Joshua Heschel, quando marchou pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos e militou também contra a Guerra do Vietnã.
  • Que o princípio da responsabilidade de uns pelos outros encontrado na Torá e reafirmado de forma contundente pelos nossos sábios ao longo da nossa história como povo, transmitidos nessa corrente intergeneracional, possam ser apropriados por nós e ser transformados em ação no mundo.

 

Shabat Shalom!

Kelita Cohen

Estagiária de rabinato e coordenadora da Academia Judaica