A parashá Kedoshim (santos) começa com uma versão alternativa das Asseret haDibrot, popularmente conhecidas como os 10 Mandamentos. Nela, reverenciar mãe e pai ganham preeminência ao guardar o Shabat, como descrito nas versões de Shemot (20:1-17) e Devarim (5:6-21), propriamente ditas. Da mesma forma, as proibições estritas lá citadas de não roubar, não enganar e não cobiçar, aqui adquirem corpo em uma dimensão moral e ética que coloca o outro no centro da análise do nosso agir no mundo.

É exatamente nesta parashá onde a ideia judaica e revolucionária de um monoteísmo ético se expressa: “ve ahavta le’reachá camôcha” (19:18) – ama o teu próximo na mesma intensidade e com os mesmos critérios que você adota para si mesmo. Interessante notar que o livro de Levíticos, o mais dedicado às questões associadas ao serviço no Templo – cujo texto foi quase completamente reinterpretado pelo judaísmo rabínico, no qual os sacrifícios e a atividade sacerdotal já não tinham lugar – é exatamente o que preserva a essência do ser judaico. 

O sábio Hilel, líder da principal escola de pensamento da tradição rabínica (referido sempre em contraposição ao seu homônimo Shamai), de alguma maneira valida este lugar do outro como sendo o centro da própria Torá. Em sua mais célebre história, ao ser desafiado a resumir toda a Torá enquanto se sustentava sobre um único pé, responde: “O que é odioso a você, não faça a seu próximo. Esta é toda a Torá, o resto é explicação. Vá e estude” [Talmud babilônico, Tratado Shabat 31a].

Nessa perspectiva, agir com empatia não é exatamente se colocar no lugar do outro, mas buscar ver-se a si mesmo em uma situação semelhante e imaginar como você se sentiria se estivesse naquela posição e, só então, agir da maneira como você gostaria que agissem com você (de acordo com o texto da Torá) ou não agir da maneira como você não gostaria que agissem (na acepção de Hilel).

Colocar-se no lugar do outro pode ser empático, mas corre-se o risco de anular o outro, pela possibilidade de não reconhecer que suas percepções e sensibilidades podem ser diferentes das nossas. 

Dentro do conjunto de valores trazidos pelo fundacional monoteísmo ético, a igualdade pode ter um peso inferior na complexa trama da hierarquia de valores, pelo perigo de tornar-se homogeneizante. Talvez o que foi proposto para a construção daquele novo modelo de sociedade se baseasse em um valor que hoje em dia toma lugar: a dignidade humana. 

A ideia de dignidade humana é central na filosofia e na ética judaica, que entende que cada ser humano é criado à imagem de Deus e, portanto, possui uma natureza sagrada e um valor intrínseco. Levinas argumenta que a relação com o outro é fundamental para a nossa compreensão da dignidade humana e que a nossa responsabilidade pelo outro é uma parte essencial de nossa própria humanidade.

Portanto, o mandamento de amar o próximo como a si mesmo, proposto ainda nos primórdios da civilização judaica, vem a ser a base para a construção da moderna ideia de direitos humanos.

Que possamos, calçados com nossos próprios sapatos, ser capazes de olhar o outro com sensibilidade e reconhecer nele a dignidade que lhe é própria.

Que possamos entender que respeitar o próximo na sua individualidade e diferença é também uma maneira de amá-lo como a nós mesmos.

 

Shabat Shalom!

Kelita Cohen

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