A condição em que se encontrava a humanidade pré-diluviana, descrita na parashá desta semana, surge quase em tom profético do que aconteceria milhares de anos depois, em um 7 de outubro.
וַתִּמָּלֵ֥א הָאָ֖רֶץ חָמָֽס
“…va’timalê ha’Áretz Hamás”
“… a terra estava tomada pela violência” (Gn. 6:11)
Naquele então, Deus havia perdido a fé na humanidade e, por esta razão, decidiu destruir todo ser vivente com um dilúvio. Esse Deus da narrativa bíblica reage como nós desejaríamos reagir frente a semelhante violência. Podemos nos sentir identificados com o Deus pré-diluviano, e ter a nossa fé na humanidade abalada. Podemos também, talvez, sentir abalada a fé na divindade, e nos perguntemos onde estava Deus em 7 de outubro.
Em qualquer dos casos, o dilúvio se revestiu de resposta divina frente à grave violência humana. Plaut comenta que, mais do que um evento histórico, “o dilúvio é, acima de tudo, uma história com uma moral”. E talvez nos perguntemos, qual moral?
Trasladados ao cenário de horror irrompido no último Simchat Torá, alguns de nós questionaria se são humanos aqueles que se propuseram a tal nível de barbárie e violência.
Hannah Arendt, por sua vez, argumentou que não deveríamos colocar em questão a humanidade dos criminosos, pois a banalidade do mal se manifesta quando pessoas comuns realizam atos terríveis sem questionar ou refletir sobre a moralidade de suas ações. Em doses homeopáticas, a violência do cotidiano revela a crise moral a que estamos imersos.
Na linguagem da Torá, Amaleque é a personificação de todo o mal. A máxima manifestação da sua maldade se expressou através de um ataque surpresa ao flanco onde estavam os mais vulneráveis dos israelitas, sem que houvesse possibilidade de se defenderem [1].
Parece ser que a semente da maldade amalequita, que já estava instalada desde os dias de Nôach, a vimos outra vez despontar seus ramos nas últimas duas semanas. E assim como nós nos encolerizamos diante das atrocidades cometidas no presente, Deus também se irou naqueles dias a ponto de decidir destruí-los com um dilúvio.
Mas o que representava a Arca e Nôach, diante daquele cenário de destruição? O rabino Jonathan Blake ressalta que Nôach é a esperança de que, mesmo quando parece que todos estão se corrompendo, alguns não estão. Nôach nos deixa ver que temos o poder de fazer o que é correto e justo, mesmo quando todo nosso entorno está corrompido.
Em meio à destruição produzida pela sentença divina, talvez nos perguntemos qual é a diferença entre essa e a destruição promovida por Amaleque, ou ainda, pela geração pré-diluviana. Em um midrash [2], o rabino Yehoshúa ben Levi disse: “Deus lamentou por Seu mundo ao longo de sete dias antes de trazer o Dilúvio”. E continua dizendo: “Ele se entristeceu…”.
Ao passo que fomos testemunhas de celebrações de correligionários do Hamás pelo massacre aos jovens na edição israelense da rave Universo Paralello, perto da fronteira com a Faixa de Gaza, ou do infanticídio no Kibutz Kfar Aza – só para citar alguns, já que a lista de barbaridades é longa e convulsiona as vísceras apenas com descrevê-las – Deus chora e lamenta as vidas perdidas na inundação.
A tradição rabínica relata que, enquanto os egípcios se afogavam no mar, os anjos começaram a exultar e a louvar a Deus com alegria. Mas Deus os repreendeu dizendo: “Os egípcios são obras das minhas mãos. Eles estão se afogando e vocês cantando diante de mim?” [3]. Aprendemos com esse midrash que mesmo que tenhamos motivo para celebrar por nossa liberdade, nossa alegria não é plena quando há outra parte que padece.
Talvez a moral do dilúvio seja a esperança que reside nos recomeços e a possibilidade de reconstruir, mesmo depois de uma grande tragédia.
Que tenha fim a violência (hamás) que tomou de assalto a terra de Israel, como nos dias de Nôach.
Que mantenhamos nossa humanidade e nossa moralidade, mesmo em tempo de guerra.
“Que haja paz na força e força para conquistar a paz”. [4]
Shabat Shalom!
Kelita Cohen
[1] Deut. 25:17-18
[2] Bereshit Rabá 27:4
[3] Talmude, Meguilá 10b
[4] Salmo 122:7
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