Outro dia, eu estava assistindo um daqueles programas que tratam do noticiário com humor, no qual eles falavam das inúmeras violações dos Direitos Humanos que estavam envolvidos na preparação do Qatar para sediar a Copa do Mundo em dezembro passado [1]. Em uma das declarações, um dirigente da FIFA afirmou que a organização encontrava dificuldades em trabalhar com governos democráticos pelos múltiplos agentes com que precisava negociar e que a organização de grandes eventos era facilitada quando os países tinham governos autoritários. Ainda que a sinceridade de sua manifestação nos choque, não são raras as pessoas que acreditam que uma unicidade de visão garanta maior coerência a um grupo (qualquer que seja seu tamanho) do que a pluralidade de ideias distintas. Em oposição a esta perspectiva, há quem acredite que o debate estabelecido entre perspectivas distintas aprimora e fortalece os processos, ainda que eles se tornem mais complexos e demorados.
A parashá desta semana, Tetsavê, começa com instruções para o estabelecimento de luzes, que ficariam permanentemente acesas no Mishkán [2]. No entanto, a frase seguinte instrui Moshé e Aharón a acenderem as velas desde a tarde até a noite. Frente a esta aparente contradição, vários comentaristas questionaram se as luzes deveriam ficar acesas o tempo todo ou apenas quando estivesse escuro. A solução, em uma abordagem classicamente judaica (e rabínica!) foi afirmar que as duas leituras tinham razão… Uma única luz era mantida acesa durante o dia, enquanto as demais luzes da menorá eram acesas apenas entre o entardecer e o amanhecer, quando a escuridão da noite demandava iluminação adicional para aquele lugar sagrado.
Há momentos da nossa história que têm grande clareza: todos concordamos sobre aonde queremos chegar e quais os melhores caminhos para atingir nossos objetivos comuns. Nestes períodos, podemos ser iluminados por apenas uma luz, ao redor da qual todos nos alinhamos. O filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), no entanto, nos alerta para que situações deste tipo não se tornem totalitárias: “uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que essa.” [3]
Voltando à instrução da parashá, nos períodos mais escuros do dia, várias velas eram acesas para gerar a luz necessária, mesmo que a luz resultante fosse mais difusa do que a luz emanada por uma única vela. De forma similar, em situações nas quais, naturalmente, existe divergência de opiniões, é fundamental que as múltiplas vozes sejam consideradas, mesmo que assim o processo se torne menos ágil. A clareza decorrente de uma única opinião geralmente é pálida frente à sofisticação e complexidade que advém do contraste de pontos de vista conflitantes. O filósofo russo Vladimir Lossky formulou esta ideia de forma particularmente afiada com relação à teologia, mas seu argumento se mantém válido também em outros campos do conhecimento: “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia, do que uma clareza superficial em detrimento de uma análise profunda.” O rabino Joseph Soloveitchik, principal referência da Ortodoxia Moderna norte-americana, expressou uma ideia similar, em uma perspectiva metafórica e igualmente teológica e que me lembra a cúpula da sinagoga na CIP: “A luz branca da divindade é sempre refratada através da cúpula da realidade composta por muitos vidros coloridos.”
Quem em nossa busca pela luz em meio à escuridão, nunca abramos mão do brilho da nossa própria vela, e aprendamos a aproveitar a força que decorre das múltiplas velas na menorá…
Shabat Shalom!
Rabino Rogério Cukierman
[1] https://youtu.be/UMqLDhl8PXw
[2] Ex. 27:20
[3] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit – Noach
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