Em meio a uma série de leis que a parashat Ki Tetsê nos traz, uma salta aos olhos:
“Se, ao longo do caminho, você se deparar com um ninho de pássaro, em alguma árvore ou no chão, com filhotes ou ovos e a mãe sentada sobre os filhotes ou sobre os ovos, não pegue a mãe junto com sua cria. Deixe ir a mãe, e pegue apenas a cria, para que você possa ficar bem e tenha uma vida longa.” (Deut. 22:6-7)
Desta passagem derivam diferentes interpretações dos nossos sábios e comentaristas ao longo dos tempos. Todos coincidem que há uma perspectiva ética envolvida nesse ensinamento, e um dos desafios assumidos por muitos estudiosos e eruditos tem sido encontrar um fio condutor que conecta esta passagem a outras relacionadas com o reino animal.
O rabino Jonathan Sacks z”l chamou a atenção para a proibição da crueldade. Neste sentido, ele estabeleceu um paralelismo deste mandamento com outro que afirma: “…nenhuma vaca ou ovelha será abatida no mesmo dia que seu filhote” (Lev. 22:28).
Sobre esta relação maternal entre animais, relaciona-se outro versículo que aparece três vezes na Torá, do qual deriva uma série de leis dietéticas: “não cozinhe um cabrito no leite de sua mãe” (Êx 23:19; 34:26; Dt 14:21). Segundo a interpretação da Dra. Ruhama Weiss, há entre todos eles um fio condutor único: a compaixão. Em sua visão, a Torá pode estar tentando nos ensinar que nem tudo o que é permitido, é desejável, e talvez devêssemos tentar alcançar um nível moral mais elevado do que o exigido por lei.
Essa hipótese foi levantada por Maimônides, ainda no séc. XII. Diz ele: “a razão pela qual não devemos causar dor ou angústia aos animais não é porque a Torá está preocupada com os animais, mas porque está preocupada com os seres humanos. Não devemos ser cruéis” (Guia dos Perplexos, III:17).
Um ensaio de Richard H. Schwartz, publicado nos Estados Unidos pelo editorial Lantern sob o título Vegan Revolution: saving our World, revitalizing judaism ressalta que a tendência da nova kashrut israelense se inclina ao veganismo ou ao vegetarianismo. Schwartz acredita que a mudança nos hábitos de consumo não é uma ação isolada que busca apenas melhorar a relação entre as pessoas e os animais, mas faz parte da “luta global por um mundo mais justo, pacífico, compassivo e ambientalmente sustentável”.
Enquanto a lei judaica permite uma alimentação à base de carne animal (com certas restrições), judeus seculares e religiosos em Israel e na diáspora se veem cada vez mais impelidos a adotar hábitos alimentares que se baseiam em critérios morais mais elevados dos que os prescritivos. Talvez a regra pós-diluviana da Torá autorizativa para uma dieta carnívora tivesse a ver com um princípio de preservação da vida (comer carne por sobrevivência), desde que os critérios para isto excluíssem formas cruéis e que provocassem sofrimento no animal.
Mesmo que os fios condutores que adotam uma perspectiva ética mencionados até aqui possam justificar uma alimentação cárnea com base no princípio da continuidade da vida, o versículo que abre toda essa discussão conclui de uma maneira surpreendente seu ensinamento sobre não abater a mamãe-pássaro junto com sua cria: “Deixe ir a mãe, e pegue apenas a cria, para que você possa ficar bem e tenha uma vida longa”. Um outro mandamento que também gratifica quem o cumpre com prolongação de vida é o de honrar pai e mãe (Êx. 20:12; Deut. 5:16).
A perspectiva que enfatiza a centralidade dos direitos humanos é contígua e solidária, daquela que defende os direitos dos animais e socioambientais, ao mesmo tempo em que se ocupa dos direitos daqueles que não têm voz: os seres vivos não humanos e as gerações futuras (Drivet, 2016).
Esse princípio – tsa’ar ba’alei chaím (hebraico: צער בעלי חיים), que é melhor entendido como “não provocar sofrimento a nenhuma criatura vivente”, é interpretado por Schwartz como sendo ‘o que é bom para as pessoas e para sua vida espiritual, também é bom para os animais e para a criação em geral’.
Assim, a maternagem – termo utilizado pela psicologia winnicottiana para designar o cuidado e proteção das mães ou outros cuidadores com relação à sua prole ou àqueles que estejam sob sua responsabilidade – é trazida na Torá como um recurso para ressignificar a própria vida e a de outrem.
Portanto, uma forma possível de interpretar essa prolongação da vida àquele que honra o vínculo que se estabelece entre dois seres por meio do cuidado, pode ser o entendimento de que, ao fazê-lo, são criadas as condições para uma vida boa e longeva.
Que este mês de Elul nos inspire a refletir sobre a abrangência que pode ter o nosso papel como cuidadores da criação divina.
Shabat Shalom!
Kelita Cohen
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